Para o historiador inglês Peter Heather, a queda do Império
Romano ocorreu não por causa da decadência política ou econômica, mas por
pressões externas de povos bárbaros.
Era o fim. A fumaça e o fogo se espalharam pelo campo de
batalha, e logo se misturou no ar um cheiro de suor, sangue e corpos queimados.
Os cadáveres de 20 mil soldados romanos, dos 30 mil que haviam participado da
luta, se espalhavam inertes pelo chão. O imperador Valenciano, que pessoalmente
comandara o embate, também desapareceu naquele dia, 9 de agosto de 378, sem
deixar vestígios. De acordo com relatos de sobreviventes, ele foi queimado vivo
pelo inimigo. Os godos tinham vencido de maneira espetacular. O episódio, um
divisor de água na história de Roma, ficou imortalizado como a Batalha de
Adrianópolis (que aconteceu na região da atual Turquia). Nunca mais o mundo
seria o mesmo. Cem anos depois, entraria em colapso a maior força política e
militar de todos os tempos, o Império Romano do Ocidente – seu território se
estendia da Itália ao norte da África e ao Oriente Médio.
Alguns anos antes da batalha, os godos já haviam penetrado
na Turquia, saqueando cidades e provocando o caos. No ano de 378, pretendiam
derrubar as portas de Adrianópolis, próxima a Constantinopla (atual Istambul),
a capital do Império Romano do Oriente. Esse braço da administração imperial
havia sido criado em 330 para facilitar o controle dos territórios na Europa
Oriental, no norte da África, Turquia, Síria e Iraque.
Os romanos acreditaram que, como no passado, seria fácil
derrotar os bárbaros. Então, como sempre, extrairiam um tratado de paz e teriam
mais um reino-cliente, que compraria mercadorias fabricadas em Roma e cederiam
guerreiros para lutar nas legiões quando fosse necessário. Mas eles não
contavam que os godos não estariam sozinhos. Ao lado deles, para surpresa do
imperador Valenciano, combatiam os temíveis hunos e os alanos.
Por trás da estrondosa vitória de 378 houve mais, entretanto,
do que o fator surpresa. O desenvolvimento social, econômico e social das
tribos bárbaras e sua convivência durante séculos com os costumes romanos
explicariam, em grande parte, o sucesso na Batalha de Adrianópolis e nas
campanhas seguintes. Em suma, causas externas, e não internas, seriam os
principais responsáveis pelo desmoronamento da grande potência. Essa visão,
sustentada pelo prestigiado historiador inglês Peter Heather, da Universidade
de Oxford, contradiz as antigas versões sobre a queda do Império Romano. Sim,
tudo aquilo que você aprendeu. Corrupção, colapso da economia e crise política?
Esqueça, afirma Heather em seu livro The Fall of the Roman Empire – A New
History of Rome and the Barbarian (“A Queda do Império Romano – Uma Nova História
de Roma e dos Bárbaros”), publicado neste ano na Europa e nos Estados Unidos e
ainda inédito no Brasil.
Para Heather, a economia romana estava bem, a corrupção era
algo corriqueiro (e não era mais acentuada no final do império do que em seu
início) e as trocas de imperadores, que realmente existiram nos séculos 4 e 5,
não seriam motivos suficientes para explicar o colapso de Roma, fato que
permanece como um dos maiores mistérios da Antiguidade. Afinal, perguntam-se
até hoje os historiadores, como foi possível que rudimentares tribos bárbaras
invadissem Roma? A resposta, para Heather, está em dois pilares: as migrações
de grandes grupos bárbaros na Europa Oriental a partir do século 3 e a
crescente sofisticação política, econômica e social de povos como os godos e
vândalos.
A tese, como seria de se esperar, suscita polêmicas. Para
Richard Saller, historiador da Universidade de Chicago e um dos maiores
especialistas do mundo em Roma antiga, o raciocínio de Heather não é muito
convincente. “A queda do Império Romano é uma questão muito grande e complicada
para ter só uma explicação. Se a economia e o poderio militar de Roma
estivessem crescendo, os ataques militares dos inimigos poderiam ter sido
repelidos”, analisa. Heather, por sua vez, sustenta que os povos bárbaros
mudaram, adotando uma organização política e uma nova inteligência que levaram
a batalhas como a de Adrianópolis. “Além disso, não é possível afirmar que a
economia de Roma estivesse mal. Foram tomadas, isso sim, medidas emergenciais
para que mais legiões pudessem ser financiadas para vigiar as fronteiras no
Oriente, então ameaçadas”, diz Heather.
Tudo havia começado, segundo o historiador inglês, com os
bem-sucedidos ataques persas às forças romanas estacionadas no Oriente, no
século 3. Pela primeira vez, os árabes representavam um obstáculo ao poderio do
império. Segundo Heather, a origem do problema estava na própria dinâmica da
hegemonia imperial. As repetidas vitórias das legiões na região causaram uma
crise de poder nas lideranças do atual Irã, até que, no final do século 3, uma
nova dinastia emergiu, os sassarianos. Eles marcharam sobre a Mesopotâmia (na
região do atual Iraque) com muito mais eficiência do que seus antecessores, os
arsacid. “O aparecimento de um super-rival foi um grande choque”, diz Heather
em seu livro. E Roma precisava reagir.
Tempos de inflação
O grande desafio era mandar mais tropas para o Oriente, mas
sem se descuidar das fronteiras da Europa, que desde o século 2 sofria ataques
dos bárbaros. Mas era preciso criar recursos para financiar os reforços
militares que protegeriam a região da Mesopotâmia. A solução foi desvalorizar a
moeda, para ter mais dinheiro – aparecia aí, pela primeira vez de que se tem
notícia, a inflação – e aumentar os impostos. Outra medida foi confiscar os
recursos gerados pelas cidades – antes, os fundos podiam ser administrados
pelos governadores locais. Os ajustes foram eficazes: em 298, os sassarianos
finalmente foram derrotados.
E a economia não ficou em frangalhos depois disso? Para os
adeptos da tese de que Roma caiu por causa de reveses econômicos e políticos,
sim. Um dos defensores dessa interpretação é o historiador italiano Giovanni
Cipriani, da Universidade de Lecce. “Criou-se a inflação, os camponeses ficaram
mais pobres e antigos aliados de Roma, como os francos, não tinham mais tanto
interesse em defender o império”, afirma Cipriani.
Segundo Heather, não foi bem assim. As províncias romanas,
como as atuais França e Espanha, viviam na época um boom, com uma agricultura
florescente e importações crescentes de artigos romanos, como cerâmicas,
vidros, jóias. Por isso, a vida econômica do império não teria sofrido uma
mudança tão grande a ponto de minar suas estruturas.
Para Heather, a grande questão é que, no século 4, a Europa
vivia uma revolução sem precedentes. Grandes migrações ocorriam no continente,
motivadas pelos avanços dos temidos hunos, uma tribo nômade originária da
Mongólia que passou a procurar novas terras na Europa Central, expulsando os
grupos de ali viviam. Ninguém sabe ao certo por que os hunos resolveram deixar
sua terra natal. Uma hipótese é que eles tenham sido atraídos pela riqueza das
vilas próximas às fronteiras do Império Romano, que se beneficiavam da
necessidade de vender alimentos para as tropas romanas e fornecer serviços em
geral.
Por onde passavam, os hunos espalhavam o terror. Eles faziam
uma guerra-relâmpago, matando o maior número possível de pessoas em um curto
espaço de tempo. Não contentes, saqueavam tudo o que viam pela frente. À
primeira notícia de que os hunos estavam se aproximando, os povos em seu
caminho fugiam apavorados. “Os alanos escaparam, empurrando os godos, que foram
cair em cima dos romanos”, resumiu uma fonte da época, o bispo Ambrósio, de
Milão.
Algumas vezes, as lideranças mais fortes desses grupos
faziam alianças com os hunos, como na Batalha de Adrianópolis. De qualquer
forma, o contato com os mongóis, se por um lado trazia medo, por outro ensinou
às tribos européias novas táticas de guerra. E, para a felicidade delas, a
necessidade de dobrar os resistentes persas tinha deixado as fronteiras da
Europa menos guarnecidas. O Império Romano como um todo havia se voltado mais
para o Oriente do que para o Ocidente. Os generais na Europa se viram sem
liderança, e teve início uma anarquia militar que durou 50 anos, até meados do
século 4. “Mas observa-se que, mais uma vez, tratava-se de problemas de ordem
externa, e não interna”, diz Heather.
Bárbaros sofisticados
Para o azar dos romanos, nos últimos dois séculos os
bárbaros haviam se sofisticado, e muito – para os historiadores, incluindo
Heather, isso aconteceu em grande parte devido a uma convivência de séculos com
Roma. Eles ainda eram analfabetos, mas já tinham lideranças fortes e certa
coesão política – no passado, as tribos dificilmente se entediam entre si. No
plano econômico, haviam descoberto novas técnicas agrícolas que aumentaram a
produtividade, gerando riqueza. Além disso, as trocas comerciais com o Império
Romano trouxeram ainda mais recursos. Uma elite se formava, pela primeira vez.
E ela estava sedenta de autonomia política e independência total em relação às
forças romanas.
“Os imperadores resistiram durante dois ou três séculos, mas
depois não conseguiram mais segurar os bárbaros”, diz Heather. Nem todos
especialistas concordam com essa teoria. Para Richard Saller, da Universidade
de Chicago, se a economia do Império Romano estivesse em melhor estado – sem
inflação e pesados impostos –, talvez houvesse uma possibilidade mais concreta
de contra-atacar. “Mas, no século 5, já estava decretado o destino de Roma”,
afirma.
Para atingir seu objetivo, as tribos partiram para a guerra,
e para valer, freqüentemente fazendo alianças entre si – outro fato inédito. Os
piores ataques foram comandados por líderes vândalos, alanos, suevos e godos,
entre os anos de 405 e 408. Eles invadiram as fronteiras junto ao rio Danúbio e
conquistaram a Espanha, a França e a Bélgica, então províncias romanas. Os
hunos também não deram trégua, obrigando as legiões a combatê-los
sistematicamente na região das atuais Áustria, Croácia, Hungria e Eslovênia.
Nesse cenário, um grupo de godos conseguiu invadir Roma em agosto de 410,
saqueando-a completamente por três dias. “O mundo romano estava abalado em suas
fundações”, escreve Heather em sua obra.
Segundo o historiador, mesmo que quisessem as províncias não
poderiam revidar. Novamente, acredita Heather, o problema era gerado muito mais
fora do que dentro dos limites do Império Romano. Essa tese é controversa. Para
outros estudiosos do tema, os povos dominados, por estarem descontentes com a
política imperial, não resistiram tanto assim aos ataques. “Foi tudo muito
rápido. E posso dizer que na França, por exemplo, já havia um desejo por
autonomia, tanto é que alguns anos mais tarde se formaram os feudos e as
monarquias locais”, diz o italiano Cipriani.
O Império Romano dava seu último suspiro no Ocidente. No
Oriente, com sua capital na Turquia, sobreviveria até 1453, quando os turcos
otomanos tomam Constantinopla. Emblematicamente, foi um líder meio huno, meio
germânico, Odoacro, que em 4 de setembro de 476 colocou o Império Romano de
joelhos. Ele obrigou o imperador Rômulo Augusto a renunciar, com consentimento
da administração da outra ponta do império, em Constantinopla, e passou a ser o
governador da Itália. Os romanos deixam de ser os donos do Ocidente. Foi o fim
da maior civilização que já havia existido. “E, com certeza, não por decadência
dos romanos”, afirma Heather. “Mas sim graças a uma enorme força exterior que
era impossível combater.”
Quem eram os bárbaros
Os antigos romanos consideravam bárbaros todos os povos que
viviam fora do limite do império. “Eles não sabiam ler, escrever e levavam uma
vida simples”, diz Peter Heather. Havia vários desses grupos espalhados pela
Europa, como os suevos, vândalos, ostrogodos, visigodos, francos, alanos e
hunos. Estes últimos eram considerados os mais letais de todos os bárbaros. Seu
maior chefe foi Átila. Após sua morte, em 453, os hunos foram dominados por
outras tribos e desapareceram.
Como era a vida em Roma no século 5
Como uma grande metrópole de hoje, a Roma do século 5 era
uma cidade pulsante, com 1 milhão de habitantes, repleta de palácios, templos e
locais de diversão. Depois de um dia de trabalho, um romano típico ia dar uma
espiada em uma das lutas no Coliseu. Até o final do Império Romano, no ano 476,
o anfiteatro funcionou a todo vapor. Inaugurado por volta do ano 80 a.C.,
comportava até 55 mil espectadores. Calcula-se que 200 mil gladiadores tenham
morrido ali. O Coliseu ficava no coração da cidade, ao lado do Fórum, onde se
desenrolava a vida política, econômica e jurídica de Roma. O ritmo agitado do
Fórum tinha como contrapartida as termas, onde a elite, formada por
proprietários de terra e membros do governo, iam espairecer. A primeira delas,
a de Caracala, foi construída no ano 217, e a de Diocleciano, em 298. Esses
prédios grandiosos, muitas vezes com decoração primorosa, abrigavam não só o
local para banhos, mas também bibliotecas, bares, barbeiros, ginásios para a
prática de esportes e até galerias de arte. Depois de ler, conversar e se
exercitar nas termas, o cidadão romano contava com o conforto de ter água
corrente em casa – um luxo raro em outras partes do mundo. Mesmo no Brasil, no
século 18, os moradores do Rio de Janeiro, então capital do país, tinham de
percorrer longos caminhos para buscar água nos rios e fontes. Em Roma, já no
ano 312 a.C., era inaugurado o primeiro aqueduto, o Aqua Appia, que levava água
de fontes naturais de colinas próximas até a cidade. A vida religiosa também
era importante em Roma, e os imperadores não hesitavam em mandar erguer
templos. O mais famoso deles era o Panteão, com suas colunas de 43 metros de
altura e o piso de mármore colorido. Inaugurado no ano 118 pelo imperador
Adriano, o edifício sobreviveu aos ataques dos bárbaros e aos estragos do
tempo. Os governantes também não pensaram duas vezes em fazer estradas
pavimentadas por onde passavam as tropas. A primeira delas, aberta em 310 a.C.,
foi a Via Appia, onde até hoje estão as marcas das bigas romanas. Era por lá
que as legiões entravam na cidade depois de uma batalha vitoriosa. Como a Via
Appia, outros testemunhos da Roma antiga, como o Coliseu, as termas de
Caracala, o Panteão e partes do Fórum, todos ainda de pé, ajudam a contar uma
história que, quase 2 mil anos depois, ainda é fascinante.
Fonte:Carla Aranha.